Imprensa Livre revela quem é o esquivo Bibinho, um tipo folclórico de São Sebastião que desperta a curiosidade das pessoas por onde passa
A jornalista Thereza Felipelli trouxe uma interessante matéria sobre um tipo folclórico de São Sebastião, publicada na seção “Perfil” do jornal Imprensa Livre, edição dos dias 4 e 5 de junho de 2011.
Trata-se do ex-estivador Bibinho, 79 anos, barbudo como o Papai Noel, homem simples, pela curtida pelo sol, que faz sua própria comida, dorme às 19 se levanta às 3 horas da manhã, acostumado a andar de bicicleta pelas ruas da cidade e que há 30 anos não usa camisa. Uma história curiosa e que vale a pena ser conhecida.
Eis a matéria da jornalista:
É Tiradentes? É Papai Noel? Não, é Bibinho!
Thereza Felipelli
Ele tem muitos nomes: Papai Noel, Tiradentes, Jesus Cristo, Barbudo, Cabeludo. Bibinho, o mais famoso apelido, foi dado pela mulher que o amamentou, visto que sua mãe não tinha leite, mas seu nome de batismo é Gilbs da Luz. Antes de mim, muitos colegas deste jornal tentaram entrevistá-lo, mas a missão parecia impossível. Por isso, é com muito orgulho que apresento abaixo um pedacinho da história desse ilustre desconhecido para alguns, companheiro de copo para outros, e grande amigo de muita gente. Mas quem será esse senhor magro, barbudo, de longas madeixas grisalhas, que tem a pele judiada pelo sol que o queima quando ele anda de bicicleta pela cidade, sem camisa, só de bermuda e sapato?
“Aqui nasci, aqui me criei, aqui trabalhei e aqui me aposentei”, diz Bibinho, que vai completar 75 anos no dia 9 de agosto. Ele mora numa casa simples na Vila Amélia, região central da cidade, ao lado de um bar chamado Castelo. Aliás, é pelos bares da cidade que Bibinho passa o dia, batendo papo com seus amigos, tomando uma cervejinha e fumando um cigarrinho. Cachaça não bebe mais há algum tempo.
Dorme normalmente muito cedo, às 19h, mas acorda (pasmem!) às três da manhã! Assim que se levanta faz um cafezinho, que toma fumando um cigarro. “Se o tempo tiver bom, peço a Deus que guie meus passos e rodo a cidade todinha. Quando vejo um ambiente agradável eu paro. Gosto de ir aonde as pessoas vão com a minha simpatia”, diz Bibinho, que não tem e nem quer ter um carro. “A bicicleta me leva onde quero ir nessa cidade. Se vou mais longe, vou de ônibus”.
Acorda cedo porque trabalhou cerca de 30 anos no cais, onde entrava antes das 7h.
Homem trabalhador
Era avulso, fazia carga e descarga. Começou a trabalhar lá em 1963 e saiu em 1992. Trabalhou sempre, registrado ou não. Hoje é aposentado. “Não é uma aposentadoria de magnata, mas dá pra comer meu arroz, feijão e ovo. Não preciso de muito. Mas eu estou bem de saúde, só fico doente quando recebo o meu pagamento e tenho que ir quitar minhas dívidas. O dia mais triste do mês é quando recebo o pagamento”, brinca Bibinho, que, além de estivador, também foi garçom, cobrador de loja e guarda noturno.
Frio é psicológico
Ele é barbudo há mais de 30 anos. E há mais de 30 também resolveu não usar mais camisa. Trabalhava no cais assim. “Já me acostumei. Não sinto frio”, garante. “Briguei com a Sabesp. O dinheiro que eu dou pro Governo é ele que tem que dar pra mim. Não vou gastar água lavando roupa, já fiz isso por 45 anos”, brinca.
Bibinho explica sua aparência dizendo que um belo dia viu uma pessoa com as mesmas características que ele tem hoje e se simpatizou com aquela figura. “Admirei o que vi e cismei que tinha que ser assim. Fiz uma lei interna minha”. Muita gente acha que é promessa, o que ele logo desmente. “A única promessa que tenho é a de respeitar Deus na angústia, na alegria e na morte”, frisa.
O simpático senhor só coloca uma camiseta quando precisa descontar um cheque no banco. “O gerente acha que só tem valor quem usa blusa”, cutuca.
Dono de uma simplicidade inigualável, a única coisa que Bibinho passa na pele e no cabelo é água com sabão de coco. E nada de protetor solar também. “Não tenho nenhum luxo”, comenta. Seu banho é morno, quase frio. Para dormir, usa apenas um lençol. No armário, tem bermudas, umas cinco. Mas nenhuma calça, muito menos casaco. Camiseta ele até tem uma. “Tá na estufa”, brinca Bibinho, que pergunta, irônico: “Se um dia eu sentir frio, o que será de vocês?”
Menino arteiro
Morava no Centro, perto do Hospital, durante muitos anos, onde se criou. Depois se mudou para a Vila Amélia, onde mora até hoje.
Foi uma criança arteira. “Bagunçava muito, roubava fruta, colocava vela acesa na lata para assustar as pessoas”, conta. “Jogava muita bola também”, afirma o corinthiano.
Por causa disso, vivia de castigo, isso quando não apanhava de cinta. “No meu tempo, ai de mim se falasse palavrão e minha mãe soubesse”, conta Bibinho, que hoje não gosta de palavrão nem de desrespeito.
Quando ele aprontava, sua mãe escondia suas roupas para que ele não saísse de casa. Só deixava uma saia, que era o que ele acabava usando. Às vezes saía pelado mesmo. “Saía cheio de pedras e um estilingue e meu cachorro Swing. Ai de quem mexesse comigo. Devia ter uns oito anos”, diz.
Bibinho conta que, além de jogar bola e taco, participava de brincadeiras inocentes que hoje não existem mais. Pescava muito também. Naquela época, na Vila Amélia não tinha muita coisa além de mato. “E um rio, onde hoje é a vala. Não tinha nem luz”, comenta.
Louco?
Já foi pra Santos e voltou de bicicleta junto com alguns amigos. “Não tinha estrada, era só trilha e praia. O pior trecho era a serra de Boiçucanga. Em Barra do Una a gente tinha que parar pra esperar a maré baixar. Isso foi em 1965. Cheguei de volta esbagaçado”, conta Bibinho, que já se jogou de um avião Teco-Teco – quando ele já estava a uns 30 metros acima do chão – quando disseram que ele ia pra São Paulo.
Outros tempos
Gilbs acredita que muitas coisas eram muito melhor antigamente. “Hoje em dia está tudo muito diferente, ninguém suja mais a mão, é tudo mais prático. Antes as pessoas dançavam colado. Hoje se dança assim com outra finalidade, não existe mais romantismo, cavalheirismo, respeito”, diz Bibinho, que costumava frequentar os bailes da cidade.
“Música? Hoje em dia não tem mais música boa”, reclama Bibinho, que gosta muito de Nelson Gonçalves, Ataulfo Alves e outros grandes artistas. “Também gosto muito de Ângela Maria e Alcione, a Marrom. Gosto de cantores que, quando cantam, comovem a gente”.
Bibinho acredita que hoje em dia o ser humano está pior. “Já levaram 20 bicicletas da porta da minha casa. O último que fez isso era um fumeta. Mas não é por isso que não vou dormir”, diz.
Ele conta também que sua vida sempre foi muito agitada. “Só Deus sabe o que eu passei na época da Segunda Guerra Mundial. Tinha que guardar a janta pra almoçar no dia seguinte. Hoje vejo madame jogando comida fora, que podia ser dada ao menos pra um animal. Já passei muita fome”, comenta Bibinho, que comia pão com ovo e banana verde cozida. “Não tinha mais nada pra cozinhar. Comia com farinha e café”.
Ele tem família?
Seu pai era pedreiro. Sua avó e sua mãe – que trabalhava num posto de saúde - eram parteiras. Tem apenas uma irmã de criação.
Nunca se casou. Juntou com uma moça chamada Marilza quando tinha já uns 54 anos, com quem mora com mais dois filhos. Eles ficam nos fundos da casa, com dois dos quatro netos de Bibinho. “Tenho mais uma filha, que foi embora há algum tempo”, conta.
Casou tarde porque gostava da vida de solteiro. “Gastava o que não devia. Era solto, livre, ia onde queria”, diz. Conheceu sua esposa na boate onde ela trabalhava. “Gostei dela, ela gostou de mim. Aí pensei: vou chamar essa diaba pra morar comigo”, brinca.
O que ele come?
E o que será que Bibinho gosta de comer? “O que vier morre”, brinca. “Já comi cobra sem saber, que eu mesmo matei. Comi e tô aqui, não morri”, afirma Bibinho, que gosta mesmo de arroz, feijão e ovo. “O segredo é o tempero. Antigamente só tinha sal, não tinham esses temperos de hoje em dia”, continua. “Faço o que vier na ideia. Carne seca com mandioca ou abóbora, batata doce. Tudo simples. E ainda vejo gente que come comida sofisticada entrevada na cama”, comenta Gilbs, que cozinha sua própria comida; e sua mulher, a dela. “Cada um tem um gosto”, explica.
Ele é inteligente?
Bibinho estudou até o 4° ano só porque se desentendeu com o diretor da escola, mas garante que sabe ler e escrever. “Fui expulso quando tinha uns 12 anos de idade. Mas a rua me ensinou muito”, conta Bibinho, que na época não tinha televisão, só rádio caixote, que nem existe mais. “Hoje escuto muito rádio e gosto de assistir televisão”, diz ele, que não sabe e nem quer saber usar computador. “Gosto de contato carne e osso”, comenta. “Não tenho muito estudo, mas muitos que tem são mais burros que eu, inclusive alguns políticos. A vida me ensinou muita coisa que não se aprende na escola”.
Em resumo
O senhor barbudo, cabeludo e descamisado que gostava, não faz muito tempo, de assustar pessoas à noite na porta do cemitério pedindo fogo para acender um cigarrinho, também é dono de uma risada tão gostosa que faz rir quem estiver por perto. Nossa conversa durou três horas. É um sarrista! Uma companhia e tanto! Cumprimenta todo mundo. E adora crianças. “Criança é meu xodó. Tem criança que pára e fala: Papai Noel”, conta Bibinho, que abriu um sorriso incrível quando uma menininha passou mexendo com ele.
Está feliz e satisfeito com sua vida. “Sou rico porque tenho saúde, compreensão, não faço pouco de ninguém. Tudo que Deus me manda está bom”, diz Bibinho, que agradece pelo pão de cada dia a cada refeição e faz uma prece ao acordar, ao sair de casa e quando vai dormir.
Com ou sem camisa, Bibinho é um caiçara incrivelmente autêntico, simples, esperto, simpático e sarrista, que garante que o dia que sentir frio, nós, reles mortais, certamente teremos morrido congelados. Fim do mistério.
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